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Senhor dos Milagres - Machico


















A lenda dos infelizes amantes Robert Machim e Ana d’Arfet, que teriam fortuitamente aportado à Baía de Machico, aponta para o facto de que, quando os primeiros navegadores portugueses chegaram a Machico se terem deparado com um epitáfio sobre o túmulo de Ana d’Arfet onde se expressava o desejo daqueles em ali se construir um templo em honra de Jesus Cristo.


É certo que o primeiro nome desta capela terá sido de Nosso Senhor Jesus Cristo ou simplesmente de Cristo mas a sua fundação nada terá a ver com esta lenda, antes estará relacionada com a gesta da expansão portuguesa. Parece que quando os descobridores Zarco e Tristão pisaram pela primeira vez solo madeirense, precisamente na parte oriental da Baía de Machico, e no dizer de Gaspar Frutuoso, logo impro-visaram um altar, tendo um franciscano que acompanhava a frota celebrado no dia 2 de Julho de 1419 a primeira missa nesta Ilha. Estes fizeram um voto de naquele mesmo local erguer um templo em honra de Cristo como agradecimento da nova terra descoberta. Esta é certamente uma explicação que se nos apresenta mais verosímil à versão romântica tão ao gosto do século XIX.
Parece ser esta capela a mais antiga da Madeira e o primeiro templo cristão construído pelos Portugueses fora do rectângulo nacional.
Sendo a capela uma velha vizinha da ribeira que atravessa toda a freguesia de Machico não admira que por várias vezes uma e outra se unissem por via das frequentes cheias, aqui conhecidas por aluviões.
Efectivamente, a história da Capela dos Milagres está também indissociável das aluviões que desde cedo fustigaram Machico, fazendo vítimas e grandes estragos, a última das quais no ano de 1956. De todas elas a mais grave, pelo seu grau de destruição, foi a de 9 de Outubro de 1803. Trata-se de uma catástrofe que atingiu toda a Ilha da Madeira, em especial os concelhos de Machico e Funchal. A chover durante alguns dias, pelas nove horas do dia 9 de Outubro parecia que as ribeiras se tinham enchido instantaneamente sendo tão precipitada a sua torrente, que volvendo penedos e troncos d’arvores de extremada grandeza, deo com elles de encontro em pontes, muralhas, e famozos edificios, inumdando huns, e arrojando outros ao mar.1
(…) Na margem esquerda da ribeira a água entrou pela Capela da Misericórdia (agora assim chamada por ser a sede desta instituição em Machico) destruindo-a quase por completo e arrastando a imagem do Senhor Jesus Cristo para o mar.
Alguns dias depois uma galera dos Estados Unidos da América que cruzava estas águas encontrou a dita imagem a flutuar em alto mar e veio entregá-la à Sé do Funchal. Porém, conta a tradição popular que a dita galera quis prosseguir viagem levando o Cristo a bordo mas que, quantos mais esforços faziam para seguir viagem mais o barco andava para trás. A solução, foi, portanto, regressar ao Funchal e devolver a imagem.
Era de facto um milagre que no meio de tanta desgraça e destruição se salvara a imagem intacta. Iniciara-se assim a veneração ao Senhor dos Milagres.
A capela foi reconstruída e ampliada nos anos imediatos pelos irmãos da Misericórdia mantendo-se dentro do possível a traça original. Para tal muito contribuiu o esforço e dedicação do provedor da Misericórdia Cristóvão Esmeraldo.
Desta forma estavam criadas as condições para o regresso da imagem à sua ermida. E a imagem do Cristo Crucificado, que se encontrava fora de casa há dez longos anos, regressou à sua capela no da 15 de Abril de 1913, sendo transportada da Sé até Machico num escaler e, chegando a terra, o povo levou-a em procissão até à sua morada.


Em 1862, encontrando-se a capela em estado de degradação, foi demolida e reconstruída. Por ser facil de alagar no Inverno2 foi reconstruída num plano superior ao alveo da ribeira.


(…) A veneração ao Senhor dos Milagres que se iniciara após a terrível aluvião de 9 de Outubro de 1803 passoua ser anualmente assinalada pelas festividades conhecidas como a Festa do Senhor dos Milagres. Estas festividades bem como a adoração ao Senhor dos Milagres, onde se inclui uma das principais procissões de fé da toda a Região, foi atraindo ano após ano um cada vez maior número de fiéis e romeiros provenientes de toda a Ilha. Neste capítulo foi muito importante o contributo da navegação costeira a vapor, sobretudo a partir dos inícios do século XX na medida em que os barcos transportavam muitos forasteiros. Não sendo o Senhor dos Milagres o orago de Machico é curioso o facto deste ser alvo de uma maior veneração da população em relação à padroeira Nossa Senhora da Conceição.




(…) Anualmente milhares de pessoas assistem e/ou participam numa das maiores, senão a maior procissão de fé de toda a Ilha da Madeira, a procissão do Senhor dos Milagres, que se realiza na noite de 8 de Outubro. Neste dia a imagem do Senhor Crucificado é levada num andor para a igreja matriz aí permanecendo até o dia seguinte, dia da aluvião, regressando acompanhada de muitos fiéis à sua capela. Os crentes aproveitam para agradecer ao Senhor as benesses a ele solicitadas ao longo do ano. Para tal levam consigo ex-votos e círios a simbolizar o pagamento das dívidas sagradas contraídas em ocasiões de maior aflição e apuro.


Dado que o bairro da Banda d’Além era basicamente um bairro de pescadores o Senhor dos Milagres tornou-se o seu protector. Daí que sejam os pescadores que ainda hoje acompanham a procissão com os archotes e carregam o andor.


De forma a sobressair a imponência dos archotes e das velas bem como todo o ambiente de esplendor e de fé colectiva, desde há muitos anos que a iluminação pública é apagada no momento da procissão.


Duzentos anos após a grande aluvião de 9 de Outubro de 1803 que, para além das vítimas e destruição, “transformou” um Senhor Jesus Cristo em Senhor dos Milagres, continuam bem vivas as tradições e o culto ao Senhor Bom Jesus dos Milagres. As suas festividades, no passado e no presente, pautam-se pelo ambiente misto de festa e de tristeza, de uma fervorosa religiosidade misturada com o mais típico arraial profano madeirense.


Notas:
1- Arquivo Histórico da Madeira, Vol. II, p. 157.
2- Annais de Machico, fl. 22.




Versos da Barca, recolha de quadras populares*



I
Nesta vila de Machico
Grande tragédia se deu
Foi um grande aluvião
Como nunca aconteceu

II
Foi três dias a chover
Sempre sem parar
Destruí-se a Capela
E o senhor foi ao mar

III
Quando estávamos no mar
Ficámos admirados
avistamos uma cruz
era o senhor dos Milagres

IV
Quando vimos o Senhor
Tratamos de o levantar
Com as lágrimas nos olhos
Começamos a rezar

(…)

IX
Levaram-no para a Sé
E não o queriam dar
Foram barcos de Machico
Todos o foram buscar

X
Veio até ao Garajau
Para ninguém perceber
Do Garajau para cá
Com archotes a arder

(…)

XLIV
Nas ondas do mar alto
Naquele mar tão profundo
Ó meu Senhor dos milagres
Queira dar a paz ao mundo

(…)

Fonte: * 1803-2003, Memórias de uma Aluvião, Colecção Patrimónios, CMM, 2003
https://madeirafolclore.wordpress.com/recursos/festas-e-romarias/senhor-dos-milagres-machico/

 

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